HARRY POTTER
O andamento da trama também explica por que tanta atenção se dá ao professor que troca de lugar com Snape, Horace Slughorn, que vem dar à escola de magia um toque de mundanidade e sede de prestígio social, com sua escolha de “favoritos” que lhe podem ser úteis no futuro (“Ocorreu a Harry a nítida imagem de uma grande aranha inchada, tecendo a teia em torno dele, torcendo um fio aqui e outro ali para trazer mais perto suas moscas gordas e sumarentas”). Potter, agora com 16 anos, se destaca nas suas aulas ao usar um velho livro paradidático cheio de anotações criativas (e potencialmente perigosas) de um ex-aluno, um “Príncipe mestiço” (que descobriremos tratar-se do próprio Snape), apesar dos avisos de sua amiga Hermione (parece que ele se esqueceu do que acontecera em Harry Potter e A Câmara Secreta).
Enquanto isso, ele e Dumbledore se ocupam em vasculhar o passado de Lord Voldemort quando era o jovem Tom Riddle e vivera, muito à Dickens, num orfanato (ficamos conhecendo também a sua mãe, que era bruxa, e seu pai, trouxa, que fugira com ela e a abandonara, grávida), e em localizar os objetos nos quais ele concentrou parte de seu ser, as horcruxes (ter tentado destruir uma delas parece ser a causa da ampla mutilação de uma das mãos do grande bruxo). Harry participará, inclusive, de uma incursão em busca de um medalhão antigo numa caverna, cujo clímax será o crime de Snapes.
Na condição de penúltimo volume, e postado entre dois livros monstruosamente prolixos e vibrantes (A Ordem da Fênix e As Relíquias da Morte), O Enigma do Príncipe parece o mais sem graça de toda a série. O primeiro (A Pedra Filosofal) a apresentava de forma muito bem sucedida, os dois seguintes eram brilhantes (A Câmara Secreta & O Prisioneiro de Azkaban) em termos de fabulação e esgotavam todas as possibilidades de Hogwarts como cenário principal (e na minha opinião ainda constituem seu ponto alto), depois o quarto (O Cálice de Fogo) abria-se para uma visão mais ampla do mundo bruxo (com o torneio internacional, além da copa mundial de quadribol), além de marcar a restauração física de Voldemort, o quinto (A Ordem da Fênix) é o ciclope que conhecemos, e o sétimo (As Relíquias da Morte) um “grand finale”. Apesar de conter o fato mais dramático até então ocorrido, a morte de Dumbledore (além disso, traído ignominiosamente), o que a sexta aventura de Harry Potter oferece?
Para começar, tem o início mais inteligente e divertido, entre todos, com o encontro entre o ministro da magia e o ministro trouxa. Além disso, é o único em que há realmente uma excursão aventuresca clássica, ou seja, para um lugar desconhecido (quando Dumbledore e Harry penetram na caverna onde Voldemort escondeu uma das horcruxes), que não seja as dependências ou imediações de Hogwarts ou do Ministério da Magia, talvez o grande momento narrativo do romance. Aliás, o desaparecimento de Dumbledore, que era uma figura perpassada por um sopro poético (não é à toa que, quando busca Potter na casa dos tios, ele diz a seu protegido de forma shakesperiana:“E agora, Harry, vamos sair para a noite em busca dessa sedutora volúvel, a aventura”) mostra o grande vazio que se abate sobre os heróis: a sucessora é a sempre firme, leal, mas inabalavelmente prosaica Minerva McGonagall (e caberá a Harry preencher o vazio).
Para os adolescentes (será que só para eles ?), há decerto um charme a mais: pode parecer estranho (e no entanto é totalmente verossímil) que Harry e seus amigos se preocupem com exames, matérias e paixonites e rusgas e picuinhas, com tal ameaça pairando sobre eles. Ou seja, o cotidiano equilibra a sombria atmosfera geral. Esse é o momento das descobertas amorosas (inclusive da paixão de Harry pela, a meu ver, chatinha Ginny Weasley, que substitui em definitivo a anódina Cho Chang), dos beijos, dos amassos, dos ficares e demais rituais da idade. Esse deve ser, aliás, o grande apelo do filme de David Yates (incrementado pela crescente beleza de Daniel Radcliffe e Emma Watson desde o primeiro filmeJ.K. Rowling os captura com precisão. Parece não estar acontecendo nada, e está acontecendo tudo.
HARRY POTTER E AS RELÍQUIAS DA MORTE
(resenhas publicadas em 10 e 17 de novembro de 2007)
Como milhões de pessoas, eu aguardava fervorosamente Harry Potter e As Relíquias da Morte, sete e último volume da série, oficialmente lançado hoje no Brasil. Não tanto para saber se o Harry viveria ou morreria (e J.K. Rowling maliciosamente brinca com tal expectativa, fazendo o bruxo descobrir que a aparente intenção de seu mentor, Dumbledore, era que ele morresse no confronto com Lord Voldemort; e, em pleno clímax, colocando um capítulo que se passa numa espécie de Além, com Harry debatendo seu destino com o falecido diretor de Hogwarts, o qual fora supostamente assassinado à traição pelo professor Snape, em Harry Potter e O Enigma do Príncipe), mas para saber se a autora conseguiria amarrar todos os fios de uma trama geral que a cada volume ficava mais intrincada e politizada.
Saldo de uma leitura febril: tirando os persistentes pequenos defeitos (muita gente acha que a prolixidade é um deles, só que as páginas de Rowling são devoráveis, e ela criou um mundo completo, então…; não, o que mais incomoda é certa obtusidade do protagonista, que insiste em uma atitude burra e às vezes nos aliena do seu ponto-de-vista, que, afinal, domina a narrativa, pois Harry está presente em 99% do texto, à exceção do primeiro capítulo, e muitas vezes isolado do mundo dos bruxos), tudo se cumpre à perfeição e com absoluta habilidade. Só é dispensável inapelavelmente o apêndice onde se dá um salto de 19 anos e que contraria de forma inconvincente o clima mais para pessimista desse livro semeado de perdas: a coruja Edwiges, Olho-Tonto Moody, Professor Lupin e sua esposa, um dos gêmeos Weasley, o elfo Dobby…
Um dos aspectos mais fortes de Harry Potter e As Relíquias da Morte é a denúncia do totalitarismo que ameaça o mundo na esteira dos acontecimentos do 11 de setembro: a limitação das liberdades, principalmente àqueles que são os Outros. Aliás, já comentei em outras ocasiões como Rowling entrelaçou de forma magistral o antigo sistema de classes da Inglaterra com o seu mundo de famílias bruxas “sangue puro” as quais têm de engolir a convivência com mestiços e “sangues ruins”, sem falar de outras espécies (elfos, duendes, gigantes).
Por outro lado, a escolha da moldura da série (os anos escolares da escola de magia de Hogwarts) não podia ter sido mais feliz, pois permitiu que se acompanhasse o desenvolvimento do personagem desde seus 11 anos, com as rivalidades, anseios e rebeldias da passagem pela adolescência. Por isso, embora a maior parte da narrativa transcorra longe de Hogwarts (Harry, Hermione e Rony saem pela Inglaterra numa peregrinação em busca das Horscruxes que contêm, cada uma, uma parcela da alma de Voldemort, para destruí-las, com escassas pistas; ao mesmo tempo, são proscritos da “nova ordem mundial” dos bruxos, e ainda ficam sabendo da existência de três “relíquias da morte”: uma varinha invencível, uma pedra ressuscitadora e a já famosa capa de invisibilidade, que Harry herdou do pai no primeiro volume da série), é mais do que justo que seja ali, o lugar que o portador d cicatriz tem como seu verdadeiro lar, o palco do embate final entre Lord Voldemort e seus Comensais da Morte e Harry e a Ordem da Fênix e a Armada de Dumbledore, após a história começar como de praxe, com o aniversário de Harry, quando ele completa 17 anos e perde o feitiço de proteção que o resguarda e portanto se torna suscetível de ser morto com sucesso pelo Bruxo das Trevas.
“O Sr. e a Sra. Dursley, da rua dos Alfeneiros, número 4, se orgulhavam de dizer que eram perfeitamente normais, muito bem, obrigado.”
Desde a publicação, há 10 anos, do livro (Harry Potter e A Pedra Filosofal, 1997) que se abria com a frase acima, os sete volumes da série não só encantaram milhões de pessoas, entre elas o autor deste artigo, mas também foram progressivamente configurando um universo completo, “mobiliado” (para utilizar uma expressão de Umberto Eco), auto-suficiente em termos ficcionais.
J.K. Rowling sabe exatamente como funcionam as crianças e adolescentes: a competição acirrada entre as casas de Hogwarts (principalmente entre Grifinória e Sonserina) prova isso. Foi ótimo que os jovens gostassem de uma coisa tão boa, tão inventiva. Só que os leitores adultos tiveram também um quinhão apreciável desse prazer inesperado. Quando surgiu o Harry da pedra filosofal foi preenchido um vácuo no mundo da fabulação: entre o infantil e o adulto nada havia, a não ser os clássicos e o cinema meio-efeitos especiais/meio-visão debilóide da vida, pós Spielberg & Lucas.
Podia ser um feliz acaso. Veio o segundo (talvez o mais impressionante de todos), Harry Potter e A Câmara Secreta, reafirmando as qualidades do anterior e permeado por um suspense incrível, até sua solução realmente inesperada e inteligentíssima.
Esses dois primeiros volumes eram esféricos, fechados em si mesmos. A partir do próximo, Harry Potter e O Prisioneiro de Azkaban (cuja solução também é bárbara, com a revelação da identidade de Rabicho, que se disfarçava no rato Perebas), o leque se abre, os finais tornam-se inconclusos, exigindo continuação, o que fica mais claro ainda em Harry Potter e O Cálice de Fogo, no qual a macro-narrativa(a guerra entre o lado de Dumbledore e o lado de Lord Voldemort, com o Ministério da Magia no meio) que percorre a série delineia-se nitidamente, o que exigirá volumes de fôlego de forma a sustentar convincentemente o clímax, Harry Potter e As Relíquias da Morte.
Na seção anterior, salientei seu lado mais politizado, a denúncia da limitação das liberdades civis, devido a uma ameaça latente ou efetiva. O que é preciso enfatizar realmente é que o dado mais preocupante reside no fato de que Lord Voldemort, com toda a sua maldade e megalomania, apenas serve como elemento catalisador de preconceitos, intolerâncias e desigualdades subjacentes à sociedade dos bruxos. Ele não perverte essa sociedade, e sim expõe o seu lado mais feio e desagradável, tão revoltante como a indiferença e estupidez do casal “trouxa” Dursley no início da história (aliás, Rowling redime o filho deles, Duda, da sua excessiva sanha caricatural neste seu adeus à série). E com que rapidez o Ministério da Magia reage, limitando ou anulando direitos civis, e transformando indivíduos em “indesejáveis” ao regime, não tanto num passe de mágica, mas através de decretos arbitrários e expurgos! Provavelmente esse fator, mais do que a extensão, é que propiciou o clima opressivo dos três últimos volumes, além da habilidosa redução do ponto-de-vista narrativo, que faz com que tudo fique ainda mais aflitivo.
Por outro lado, entre as muitas qualidades de Harry Potter e As Relíquias Sagradas, não se poderia deixar de destacar a justiça que o livro faz a dois personagens essenciais à trama (é verdade também que a adorável Sra. Weasley tem seu momento de glória ao duelar com a perversa Belatriz): o professor Snape e Neville Longbottom.
Snape é um dos personagens de trajetória mais bem urdidas dentro da série, em razão da ambigüidade que cerca seu posicionamento, e isso até o fim, quando Harry descobre o porquê dos seus atos (seu amor por Lílian Potter) e a combinação entre ele e Dumbledore (acometido por uma doença terminal) para tirar o máximo efeito possível de um pretenso assassinato (propiciando ao diretor da Sonserina reaproximar-se de Voldemort), num dos capítulos-chaves do romance, o quase elegíaco “A história do príncipe”. O que torna efetivamente trágica a figura de Snape e o redime de todos os desagradáveis confrontos anteriores com Harry é que este fica sabendo da verdade após testemunhar a morte do seu professor mais detestado (ou seja, quando a vida deste transformou-se em destino) por ordem de Voldemort, o qual acredita ser indispensável sacrificar seu “colaborador” para possuir de fato uma das três “relíquias da morte” (como se vê, tudo é muito bem amarrado).
Já a figura de Neville cresceu junto com a série: era o gordinho desajeitado, objeto de risotas e peças de mau gosto, servindo um pouco de alívio cômico, e aos pouquinhos (muito aos pouquinhos, discretamente) foi mudando e afirmando-se; também ficamos sabendo do passado terrível de sua família, e houve até a possibilidade de que ele fosse o predestinado, ao invés de Harry (como se aventou em Harry Potter e A Ordem da Fênix). Pois na volta de Harry, Rony e Hermione a Hogwarts, após centenas de páginas, descobrimos que ele é o líder da resistência a Voldemort na escola, o que levará ao desenlace (a batalha entre os dois lados), no qual ele estará ao lado do protagonista (cumprindo de certa forma a enviesada profecia) no momento crucial, em que tudo se decide
Nenhum comentário:
Postar um comentário